domingo, 23 de outubro de 2011

NARCISO É O OUTRO NOME DO POVO (I)



* Guilherme da Silva Cunha




O tirano só é tirano na concepção de La Boetie; porque os homens lhe dão o poder, ou seja, a sociedade produz o tirano. Agora é interessante notar na obra o DISCOURS que quando a sociedade põe alguém em um lugar acima dela, ela própria produz simultaneamente a si mesma.

O tirano representa o grande Outro para a sociedade, o grande que é, e que por isso mesmo o povo “empresta” seus ouvidos, sua voz, suas mãos, seus pés para ele que é, lhe poder representar (segundo a visão do povo) em tudo aquilo que o povo não é, mas que gostaria de ser.

É nesse sentido que a servidão é desejada; porque “o povo [...] serve tão francamente e tão voluntariamente, que dir-se-ia, ao vê-lo, não ter ele perdido sua liberdade, mas conquistado sua servidão”. Os homens servos estão “encantados e enfeitiçados pelo próprio nome do Um”.

“Não são as armas que defendem o tirano, mas quatro ou cinco que lhe mantêm o país em servidão, cinco ou seis que são os cúmplices de suas crueldades, os quais têm seiscentos que servem sob eles, esses seiscentos mantendo sob ordens seis mil, e grande é a extensão do filete em que seria visto, para explicá-lo, que não os Seis mil, mas os cem mil, mas os cem milhões que por essa corda se prendem ao tirano [...]”.

O tirano só se torna tirano por causa da vontade e do desejo do povo.

A dominação se dá pela servidão voluntária, isto é, pela vontade e desejo do povo em querer ver o príncipe como um espelho.

O desejo do povo é o de coincidir consigo, de ser a interrogação sobre o seu ser; por isso sempre encontra um termo imaginário para se refugiar. Essa é a servidão voluntária: não tanto o desejo de ser dominado, mas o de ser nomeado, de adquirir uma identidade imaginária, precipitando-se dentro de um corpo que não pode ser decomposto, onde cada um se funde com cada outro. O amor do povo pelo tirano nada mais é do que seu amor por si mesmo: Narciso é o outro nome do povo. O povo, na verdade, se dá fora de si, um Outro que ele vê e pelo qual ele é visto, que é visível para ele e para o qual ele é visível. Mas os olhos do Outro são os próprios do povo, seus membros, os membros do povo. Portanto, a dominação só ocorre; porque o povo se vê por si mesmo no Outro, como se Ele se tivesse voltado sob seus próprios olhos.

O povo é o grande responsável pela emanação do poder; pois ele tem a maior força, tanto para POR o soberano no poder, quanto para TIRÁ-LO, basta o povo querer e desejar a liberdade. Logo, de maneira alguma o povo é “burro” para La Boetie. Até porque quando o povo quer ser livre ele consegue; pois “para ter a liberdade é preciso desejá-la”. A decisão é do povo, “estejam resolvidos a não mais servir e estarão livres”.





*É filósofo, professor de Filosofia da Faculdade Euclides da Cunha, da Faculdade Diocesana de Filosofia, da Universidade Federal do Acre e da Escola Estadual Sebastião Pedrosa, autor dos livros Fragmentos Filosóficos e Poéticos, Dobras Filosóficas e Ser Ou Não-Ser: Eis a Tesão! Um Olhar Trágico Sobre a Existência.



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