domingo, 23 de outubro de 2011

NARCISO É O OUTRO NOME DO POVO (I)



* Guilherme da Silva Cunha




O tirano só é tirano na concepção de La Boetie; porque os homens lhe dão o poder, ou seja, a sociedade produz o tirano. Agora é interessante notar na obra o DISCOURS que quando a sociedade põe alguém em um lugar acima dela, ela própria produz simultaneamente a si mesma.

O tirano representa o grande Outro para a sociedade, o grande que é, e que por isso mesmo o povo “empresta” seus ouvidos, sua voz, suas mãos, seus pés para ele que é, lhe poder representar (segundo a visão do povo) em tudo aquilo que o povo não é, mas que gostaria de ser.

É nesse sentido que a servidão é desejada; porque “o povo [...] serve tão francamente e tão voluntariamente, que dir-se-ia, ao vê-lo, não ter ele perdido sua liberdade, mas conquistado sua servidão”. Os homens servos estão “encantados e enfeitiçados pelo próprio nome do Um”.

“Não são as armas que defendem o tirano, mas quatro ou cinco que lhe mantêm o país em servidão, cinco ou seis que são os cúmplices de suas crueldades, os quais têm seiscentos que servem sob eles, esses seiscentos mantendo sob ordens seis mil, e grande é a extensão do filete em que seria visto, para explicá-lo, que não os Seis mil, mas os cem mil, mas os cem milhões que por essa corda se prendem ao tirano [...]”.

O tirano só se torna tirano por causa da vontade e do desejo do povo.

A dominação se dá pela servidão voluntária, isto é, pela vontade e desejo do povo em querer ver o príncipe como um espelho.

O desejo do povo é o de coincidir consigo, de ser a interrogação sobre o seu ser; por isso sempre encontra um termo imaginário para se refugiar. Essa é a servidão voluntária: não tanto o desejo de ser dominado, mas o de ser nomeado, de adquirir uma identidade imaginária, precipitando-se dentro de um corpo que não pode ser decomposto, onde cada um se funde com cada outro. O amor do povo pelo tirano nada mais é do que seu amor por si mesmo: Narciso é o outro nome do povo. O povo, na verdade, se dá fora de si, um Outro que ele vê e pelo qual ele é visto, que é visível para ele e para o qual ele é visível. Mas os olhos do Outro são os próprios do povo, seus membros, os membros do povo. Portanto, a dominação só ocorre; porque o povo se vê por si mesmo no Outro, como se Ele se tivesse voltado sob seus próprios olhos.

O povo é o grande responsável pela emanação do poder; pois ele tem a maior força, tanto para POR o soberano no poder, quanto para TIRÁ-LO, basta o povo querer e desejar a liberdade. Logo, de maneira alguma o povo é “burro” para La Boetie. Até porque quando o povo quer ser livre ele consegue; pois “para ter a liberdade é preciso desejá-la”. A decisão é do povo, “estejam resolvidos a não mais servir e estarão livres”.





*É filósofo, professor de Filosofia da Faculdade Euclides da Cunha, da Faculdade Diocesana de Filosofia, da Universidade Federal do Acre e da Escola Estadual Sebastião Pedrosa, autor dos livros Fragmentos Filosóficos e Poéticos, Dobras Filosóficas e Ser Ou Não-Ser: Eis a Tesão! Um Olhar Trágico Sobre a Existência.



segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Da Vida

*Guilherme Cunha

A vida é simples.
A palavra pode aprisionar
Os destinos dos humanos.

Não se busca mais a
Petrificação da palavra
Na imagem. Mas se
Busca a palavra como
Artifício para sorrir e
Brincar.

A vida que se torna palavra
E a palavra que se transforma
Em vida não estão mais presas
Em cânones. Eles agora se
Alegram com as múltiplas
Manifestações estéticas da
Existência.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Ser ou Não-Ser, eis a tesão!

*Antônio Stélio





O filósofo Guilherme Cunha, professor concursado e recém empossado pela Universidade Federal do Acre (UFAC) está lançando em março seu novo livro com o título acima. Trata-se de um olhar crítico do ponto de vista do pensamento trágico sobre a existência humana. Abaixo publico a apresentação que fiz da obra.





Zaratustra solta a voz na floresta amazônica





Antonio Stélio

Existe um ditado corrente entre os gurus da velha Índia que diz: se você encontrar Buda no caminho, mate-o. Osho - um desses gurus mais conhecido - gostava de citar a frase a seus seguidores.

Ele queria alertar contra a nociva dependência de um mestre. Buda está morto há mais de dois mil e quinhentos anos, portanto, ninguém pode matá-lo.

Do mesmo modo que Jesus Cristo também não pode ser crucificado uma segunda vez. Os seguidores de ambos não precisam assassiná-los, apenas superá-los, libertando-se da sombra influente.

É assim que um discípulo supera o mestre.

Livrando-se dele.

Inteligente, Nietzsche, a rigor, não teve mestre. Nem podemos afirmar que fora discípulo de quem quer que seja: do pai, da mãe, do músico Wagner ou do irascível Arthur Schopenhauer ou até mesmo de algum outro barbudo de seu tempo.

Ou da antiguidade.

Mas, ele criou o profeta Zaratustra para cuidar de suas ideias. Para anunciar suas boas novas. Profetas e discípulos parecem andar pela mesma seara.

Que este o superasse, então, se quisesse.

Superar não superou, mas proliferou zaratustras pelo mundo, que ainda hoje carregam seus cadáveres em tresloucadas trajetórias, comumente incompreendidas, indecifradas.

No prólogo de Ecce Homo Nietzsche confirma nossa interpretação:

§ 3: Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar da altitude, um ar forte. É preciso ser feito para ele, senão o perigo de se resfriar não é pequeno. O gelo está perto, a solidão é descomunal – mas com que tranquilidade todas as coisas estão à luz! [...]

O pensamento trágico traz em seu bojo esse ar rarefeito, um silêncio que grita, mas com uma claridade tão enormemente cintilante, que somente não faz enxergar aos cegos pelas crenças; aos idiotizados pelo saber acadêmico ou aos mortos vivos incapazes de amar a vida.

A constatação assusta sim, afronta, mete medo.

Tudo isso porque não engana.

Ensina na bordoada mesmo. Para ensinar o trágico somente existe uma maneira: tragicamente. Assim a grande lição do Zaratustra deste livro é: a vida é trágica! Viva!

E esta é a compreensão fundamental para ser um Zaratustra.

E Guilherme Zaratustra Cunha encarna essa concepção, na qual, vai além: originaliza-se. E se torna um verdadeiro profeta que com seu cajado emissor de palavras grita nos ouvidos dos moucos; dos velhos; dos covardes e dos ultrapassados; encontra ressonância na avidez da juventude destemida e registra no cartório da filosofia seu livre pensar.

E assina em baixo.

Ou em cima. Tanto faz.

Por isso não tenho medo de afirmar: este é de longe o mais trágico dos textos que já me caiu às mãos entre todos os novos zaratustras.

E Guilherme é o autor da proeza.

Para ler este texto é preciso ter estômago. E cheio de ar. Leia-o de um só fôlego e sentirás uma grande explosão tinindo aos teus ouvidos, tuas têmporas, tão ensurdecedora é a mensagem.

Você vai se assustar, claro.

Mas, desnecessariamente.

A verdade é que a emoção que sentirás apenas vai parecer susto, medo, pavor. Apenas parecerá. Lá no fundo de tua alma o que sentirás, efetivamente, será o espanto.

E quando compreender isso, quando estiveres diante do espanto tu saberás, então, que estás lendo filosofia. Melhor: filosofia trágica, aquela que te explode com dinamite em mil pedaços e esmaga os restos mortais – se alguma coisa sobrar - à martelada.

É nesse momento que te sentirás cruelmente vivo e humano. Demasiadamente humano. E feliz. Extraordinariamente feliz.

Porque somente o trágico sabe-se feliz.

Quer um aperitivo? Prove, pois, bem devagarinho, pelas beiradas, como se fosse aquela papinha de aveia quentinha, fumegando, à mercê de suas narinas:

Existiria felicidade sem prazer?

Epicuro uniu o prazer do corpo com o prazer da alma. A felicidade é possível. Cada homem tem que roubar o seu fogo dos deuses?

O fogo está em vós, o fogo sois vós!

Quereis acender-se em eternas chamas? Não devereis perder demasiadamente o contato com as mulheres. Elas têm sempre uma brasa acesa por baixo das suas cinzas, é só assoprar.

As mãos podem te ajudar a abanar se não tens bons pulmões.

Mais não te posso oferecer. Sob pena de quebrar o encanto.

E o espanto.

Assim, este livro é uma dádiva para os amantes da filosofia; é um presente para os descontentes felizes; é um bálsamo para os espíritos que amam a vida incondicionalmente e um elixir para a juventude não perder o viço.

Não fugir da raia.

Aqui há um Zaratustra que toma diversas facetas: profeta como sempre, mais que se veste também com diferentes roupagens. O Zaratustra deste livro é professor ou terrorista? Padre ou rabino? Poeta ou Don Juan das letras? Mentecapto ou ilustrador da razão? Pode ser um pouco de cada um ou nenhum deles, dependendo do olho que lê.

E tudo vê.

Mas, sobretudo, é genuinamente um filósofo. Guilherme é filósofo na alma, no sangue. Ele tem DNA de filósofo.

Lendo-o irá o leitor ter sonhos com Wilhelm Reich falando sobre a função do orgasmo; ouvirá Roberto Freire gritando que sem tesão não há solução; se entreterá com Nietzsche vivendo o amor fati; sentirá pulsando a alma de Clément Rosset na alegria maior; perceberá um velho Epicuro harmonizando corpo e mente e sentir-se-á livre e sem medo, e poderá até defecar, animalescamente, onde lhe der na telha. Ele lhe dirá: sim, ame e dê vexame!

Guilherme Cunha não tem amarras.

Por isso, fundamentalmente, saiba que depois de ler este livro você não será mais o mesmo. Estará para sempre livre dos grilhões metafísicos que aprisionam os homens cheios de dúvidas. Ganhará um espírito forte, aristocrático e viverás com luz própria. A luz que faz os grandes homens: aquele que é dono de seu próprio nariz.

Terá matado teu Buda. Terá se livrado do mestre.

Mergulhe e submerja de alma lavada. Depurada.

Sem medo de ser feliz.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O Sorriso

*Guilherme da Silva Cunha

O sorriso estampado no
Rosto nem sempre
Traduz felicidade.
Pode muito bem ser
Uma forma de ocultar e
Suportar dores
Profundas.
O real estado de espírito
É marcado pela importância
Que se atribui à existência
Por intermédio da fala do
Pensamento.
Somente no pensamento  é
Que sabemos quem somos;
Pois sentimos realmente
O quanto sofremos e o
Quanto nos
Alegramos.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

ALGUMAS IDEIAS SOBRE O EXISTENCIALISMO ATEU DE SARTRE E HEIDEGGER.

*Maria Ivanilda Souza da Silva



O filósofo francês Jean-Paul Sartre em sua obra “O Existencialismo é um Humanismo”, defende a idéia de que “Se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem”.

Para o existencialismo ateu nada somos antes de nossa existência. Primeiro nascemos depois é que passamos a ser. Não possuímos uma natureza prévia, uma essência já definida, ou melhor, não existe um Deus para conceber no homem essa natureza.

O homem encontra-se lançado no mundo, ele não se constitui como um ser especial, com uma missão a cumprir. O homem encontra-se desamparado, sozinho no mundo, condenado a fazer as suas escolhas e a responsabilizar-se pelas conseqüências destas, não existe pré-determinismo, não existe destino, tudo que o individuo vier a ser será sempre fruto de suas escolhas.

A existência humana se realiza como boa ou ruim, autêntica ou inautêntica dependendo daquilo que o homem faz de si mesmo, do seu engajamento, do seu modo de agir e de se relacionar com a sociedade. Pois ao negar a existência de Deus, o existencialismo não nega a necessidade de uma ética. A boa conduta humana não deve ser fruto de temor em relação ao pecado ou ao inferno, mas direcionada pela consciência da importância do bem agir.

Ao dizer que a existência precede a essência, se quer afirmar que é o homem quem constrói o seu modo de ser a partir do seu existir. A construção do ser do homem se dá na relação com o mundo e com os outros homens. Pois, de acordo com Heidegger, não podemos ser sem os outros, todos os meus projetos de vida só se realizam com a contribuição de alguém, ou seja, para alguém se tornar professor, ele necessariamente precisa de outras pessoas, de vários professores que contribuíram na sua instrução, de vários autores que produziram obras para o aprofundamento de suas pesquisas e de seu saber, e ainda, para ser professor é preciso alunos para que ele venha contribuir com sua formação. Portanto, é perceptível com o exemplo dado, que é impossível ser sem os outros. Assim, como somos seres com os outros, também somos seres no mundo, o que significa dizer que temos que cuidar bem das coisas do mundo, da natureza, do meio ambiente. Mas o mundo só possui um sentido a partir da interpretação humana, o mundo só tem um significado pelo fato de poder ser utilizado como objeto pelos humanos. Por isso, o homem encontra-se envolvido diretamente com as coisas do mundo, nesse sentido, cabe aos indivíduos não apenas interpretá-lo, mas também transformá-lo.

A plena realização do homem se dá ao alcançar a realização de seus objetivos, como o existencialismo rejeita a idéia da existência de um destino pré-determinado, cabe ao homem projetar e construir o seu próprio caminho. A sua realização depende dos projetos de vida que ele concretizar, do engajamento que ele tiver para que isso aconteça. A existência se constitui, nesse sentido, como projeto, o homem será aquilo que ele fizer de si mesmo, e não aquilo que for determinado por um ser superior.

Ao negar a existência de um Deus e de um determinismo, o homem para o existencialismo, é totalmente livre para fazer as suas escolhas, para determinar o que é bom ou ruim para si mesmo e para a humanidade, pois todas as escolhas do individuo não se constituem como um aspecto isolado, mas refletem e influencia de alguma forma na vida de outras pessoas, assim como, aquilo que nós consideramos bom para nós, achamos que serve também para os outros. A liberdade, portanto, implica responsabilidade, se não há um determinismo não tem espaço para desculpas, todas as escolhas humanas são de responsabilidade plena do homem.





*É filosofa, professora e vice- presidente da Academia Acriana de Filosofia

terça-feira, 15 de junho de 2010

História do Internamento Psiquiátrico na Cidade de Manaus

História do Internamento Psiquiátrico na Cidade de Manaus

Guilherme da Silva Cunha



A população de Manaus cresceu vertiginosamente, por causa da imigração, a maioria de nordestinos, que "entre 1877 e 1879, o nordeste brasileiro sofre uma das piores secas de sua história. Somente do Ceará, mais de 65.000 pessoas partem para a Amazônia, acossados pelo flagelo natural e pela crise da economia agrária. Esse contingente humano vai servir de mão-de-obra nos seringais" . Também outros autores trataram do assunto, vejamos "...no período de 1877 a 1900, encontrei 158.125 nordestinos emigrados para a Amazônia..." Dorneles Câmara, no seu trabalho Colocação no Amazonas dos flagelados do Nordeste, publicado em 1919, calcula que de 1877 a 1890, a população cearense ficou reduzida a um terço. 'Talvez certa de 300.000 pessoas haviam falecido umas e emigrado outras'.

Já Arthur Dias, no seu livro O Brasil Atual, calcula que somente os anos de 1877 a 1889, 'o êxodo para o norte e para o sul do Brasil tomou proporções assombrosas, calculando-se em cerca de 150.000 cearenses a terra do berço para fugirem à calamidade'.

Tomaz Pompeu de Souza Brasil, em O Ceará no Começo do Século XX, publicado em 1909, 'registra que somente nos meses de novembro e dezembro de 1877, os retirantes foram 42.931 e 80.000 respectivamente, perfazendo o total de 125.931, em outubro de 1878 foram 108.656, e em abril de 1879 somente 17.486 retirantes.

Rodolfo Teófilo, em Secas do Ceará (1901) e História da Seca do Ceará, editado em 1883, diz que o Ceará em 1878 perdeu por mortes 118.927 e pela emigração 54.875.

Pompeu Sobrinho, em O Ceará -Aspectos Fisiológicos e Antropológicos, estima que "depois do flagelo climático de 1919, o Ceará expulsou 60.00 almas. A seca de 1915 desfalcou a população de 97.000 pessoas" .

O importante é perceber que não foi somente a seca que expulsou os nordestinos para a Amazônia, mas também eles foram seduzidos pela forte propaganda do governo nos meios de comunicação no sul do país sobre a Amazônia. A região era vista como, uma terra em que corre "leite com mel", um lugar onde a extração da borracha era um "belo" meio para se ganhar dinheiro e enriquecer rapidamente. Mas quando os seduzidos pela propaganda chagavam em Manaus, no tempo áureo do ciclo da borracha, os seus destinos estavam assim traçados: os jovens que eram sadios e fortes logo eram convocados e aproveitados pelos coronéis e patrões seringalistas na grande e dura labuta da extração da goma elástica, os velhos e as mulheres se adentravam na economia informal ou iam para a rua mendigar.

Antes da terrível crise da borracha, os patrões adotavam uma linha extremamente dura e com severas proibições, se tratava de um sistema de semi-escravidão, onde, nos seringais, os seringueiros não podiam cultivar a agricultura de subsistência e muito menos plantar verduras. Pois se eles (os seringueiros) fizessem tais coisas, os patrões não tinham para quem vender seus enlatados, seu açúcar branco, sua farinha branca e seu arroz polido. Então, o que aconteceu? Aconteceu que os seringueiros eram obrigados a comprar e se alimentar com ausência de vitamina B1 (tiamina), aí a maioria adoecia com beribéri, que é uma doença provocada pela ausência de tiamina na dieta humana "...ela é caracterizada por um acúmulo de fluídos corporais (inchaço), paralisias e, em última instância, morte."

Outrossim a deficiência de tiamina lesa os nervos periféricos (beribéri "seco"), o coração (beribéri "úmido") e o sistema nervoso central (síndrome de Wernicke-Korsakoff).

Nos países subdesenvolvidos onde grande parte da dieta escassa é constituída por arroz polido, como ocorre em muitas áreas do sudoeste asiático, às vezes surge deficiência de tiamina. O beribéri foi também observado entre prisioneiros de guerra maltratados "...Os principais alvos da deficiência de tiamina são (1) coração, (2) os nervos periféricos e (3) o cérebro...O álcool lesa os mesmos e a deficiência de tiamina é encontrada comumente em alcóolicos crônicos..." . Combinando-se álcool com uma dieta pobre em tiamina, como era o caso do extrativismo, se podia imaginar as consequências funestas para a região.

Em 1908, numa estatística mortuária da cidade de Manaus o beribéri "occasionou 119 óbitos, não havendo, entretanto, epidemia na capital. A maioria doa casos procederam do interior do Estado" . Parafraseando: a maioria dos casos vindos dos seringais. É exatamente nos seringais que o beribéri encontra abrigo predileto, devido à ausência de tiamina no cardápio dos seringueiros, que além de não comerem verduras e frutas, ainda tomavam bastante cachaça; ajudando, com isso, o beribéri a desencadear-se com mais freqüência e tenacidade.

A maioria dos doentes de beribéri, eram internados na Santa Casa de Misericórdia e como os médicos desconheciam tal doença, quando os doentes eram atingidos no sistema nervoso central (síndrome de Wernicke-Korsakoff) e que "...caracteriza-se...ataxia de marcha e do equilíbrio e desorganização da função mental caracterizada por confusão global, apatia, desatenção e desorganização. Cerca de 10 a 20 % dos doentes hospitalizados morreram habitualmente de infecção intercorrente, delirium tremens ou insuficiência cardíaca (em alcoólicos) ou colapso cardiovascular brusco" . Logo, alguns dentre estes eram tidos como "loucos" principalmente por causa do "delirium tremens", e enviados ao Hospício Eduardo Ribeiro. Chegando ao hospício, como não havia um psiquiatra responsável pelo atendimento dos pacientes e sim um clínico geral, que não conhecia a causa e os sintomas do beribéri e não podiam conhecer, pois somente, em 1914, é que a medicina vai descobrir e fornecer o quadro diagnóstico de tal doença. Os doentes internados no hospício eram "...vitimados pelo beribéri que entre eles se desenvolvera em larga escala, e como uma parte do prédio ameaçasse cair, foram eles transportados pela urgente necessidade da ocasião, para a casa sita à rua Ramos Ferreira, de propriedade do sr. Miranda Leão, onde ainda se acham mal alojados, pois o prédio não se presta para tal fim..."



Acreditava-se que o beribéri era uma doença desenvolvida no hospício devido às péssimas condições higiênicas e arquitetônicas do prédio e que a loucura matava. Porém, hoje podemos afirmar veementemente que o beribéri é uma doença causada pela ausência de tiamina na dieta e que a loucura não mata ninguém, e sim, outras doenças. Como podemos ver no quadro acima, o beribéri exterminou os pacientes e não a loucura como atestavam os "especialistas" daqui de Manaus naquela época. Até porque "a loucura só existe com relação à razão".

Também na casa de detenção "o estado sanitário deste estabelecimento infelizmente continua a merecer os mais sérios cuidados, sendo preciso a cada momento remover presos para a Santa Casa de Misericórdia devido ao impaludismo e beribéri, moléstias terríveis, cujos casos/fatos são constantes n'aquele departamento, devido ao local e a construção defeituosa do edifício" .

Esta passagem só vem enriquecer ainda mais a tese mencionada anteriormente. Pois, o destino dos doentes de beribéri é o Hospício Eduardo Ribeiro e o extermínio dos mesmos, no mesmo hospício pela mesma doença acima citada.

Já nos seringais não é só o beribéri que reina e extermina. É também "...as úlceras tropicais que se multiplicam em tantas modalidades, causando aos trabalhadores dos seringais grande entrave ao regular e eficiente emprego da atividade..." . E qual é a principal causa? Não é preciso ser um grande especialista no assunto para perceber que é devido à ausência de vitaminas encontradas essencialmente em alimentos frescos, tais como: verduras e legumes. Porém, podemos levantar a hipóteses de muitos seringueiros terem adquiridos úlceras nervosa, devido à forte pressão dos patrões e seus colegas que faziam o medo pairar nos seringais. Pois os seringueiros estavam sobre dependência dos seringalistas que os avassalavam na relação comercial, como podemos ver no texto a seguir: "Na verdade, as modalidades de troca variavam não apenas de propriedade para propriedade, mas até mesmo de estrada para estrada, uma vez que cada um dos "aviados" podia estabelecer acordos muito diversos com o respectivo patrão. Por exemplo, muitos seringueiros eram realmente seringalistas em pequena escala, que possuíam legalmente quatro ou cinco estradas, juntamente com terra suficiente para sustentar a si próprio e suas famílias com uma dieta de mandioca, peixe e caça. Ainda assim, esse seringueiro proprietário teria relações informais de dependência com um comerciante do vilarejo, ou com um vizinho mais rico, mas essa relação seria mais flexível e menos suscetível de coração do que a existente entre o seringueiro não-proprietário e o seringalista" . Agora podemos nos perguntar: qual o tipo de coerção exercida pelos seringalistas sobre os seringueiros não-proprietários? A coerção era imposta através do "imenso potencial de fraude, trapaça...onde um pequeno grupo de negociantes poderosos tenta extrair o máximo rendimento de um conjunto limitado de produtores" . E para reforçar mais, declaramos através do texto seguinte que "havia conflitos e tensões em todo os níveis da rede de aviamento, variando de intensidade desde pequenas trapaças banais até a violência declarada, sendo o seringueiro a principal vítima de tais fraudes e maus-tratos" . E ainda mais "o relativo isolamento do seringueiro e seu justificado temor de represálias tornava difícil e rara a resistência coletiva. O seringueiro dispunha, porém, de alguns meios de autodefesa. Uma reação comum e lucrativa contra o comerciante que tentasse aumentar suas exigências, ou elevar os preços, era acrescentar pedras, areia ou farinha de mandioca à pela de borracha para tornar maior seu peso. Deste modo, o seringueiro podia aumentar significativamente seu ganho sem trabalho adicional, e dificilmente a fraude era descoberta antes que a pele chegasse a Belém ou a Manaus. Já nas docas, ela seria aberta no meio para ser inspecionada, mas a essa altura era praticamente impossível verificar qual o seringueiro responsável pela adulteração.

Forma particularmente grave de 'resistência' do seringueiro era a venda de borracha a um regatão e não ao patrão habitual do seringueiro..." . Agora, portanto, convém lembrar que todos esses fatos acima mencionados podem muito bem Ter contribuído para eles adquirirem as chamadas "úlceras tropicais".

Até aqui defendemos a tese de que foi no tempo áureo do ciclo da borracha que houve o maior índice de beribéri em Manaus. Agora, passamos a tratar da tese de quase extinção do beribéri que só foi possível por causa dos "tempos difíceis" da grande crise do ciclo da goma elástica.

Vejamos como isso ocorreu:

"A produção da borracha foi diminuída, pois a Ásia continuava a expandir suas plantações, enquanto o número de seringueiros nativos mantinham-se constante ou mesmo em declínio.

O quadro de exportadores de Manaus alterou-se bastante, com a retirada de inúmeras firmas estrangeiras dos negócios e com a entrada de outras, pertencentes a nacionais e portugueses. Contudo, reduziu-se o seu número, e como já vinha ocorrendo há anos, um pequeno grupo controlava a maior parte das exportações.

Os recebedores, na sua maioria, era os mesmos do período anterior. Além das saídas naturais e de algumas falências, durante a grande crise, houvera o crescimento de muitas empresas, substituindo outras em declínio, no ranking dos aviadores. O sistema de aviamento continua funcionando, embora muitos dos produtos estrangeiros importados estivesses sendo substituídos por similares das crescentes agricultura e indústria do sul, do país.

A grande mudança dera-se ao nível das zonas de produção. Um bom número de seringalistas perdera as suas propriedades para firmas aviadoras, ou as loucuras a terceiros, os arrendatários, seus substitutos na linha de produção. Muitos deles voltaram aos seus estados de origem, ou passaram a residir nas capitais, ou ainda, conseguiam cargos políticos, nos quadros administrativos municipais, deixando a sua atividade inicial.

Como a borracha não era mais atrativa, o fluxo de emigrantes do nordeste diminuíra, orientando-se para o centro-sul, na busca de melhores e mais seguras remunerações.

A queda da rentabilidade dos seringais impedia aos seus possuidores a obtenção de disponibilidade monetárias, para o financiamento das correntes migratórias. .Por este motivo, passara a existir uma agricultura de subsistência nos seringais, aumentando a oferta de alimentos não manipulados a naturais, disso decorrendo a extinção do beribéri, doença ceifadora de milhares de trabalhadores, nos anos anteriores. A estabilidade populacional e a sua adaptação ao meio, também reduziram

Os casos de doenças endemo-epidêmicas, começando os seringueiros a se auto substituírem, pelo crescimento demográfico local, desaparecendo a necessidade das grandes levas anuais de semi-escravos, arrebanhados do nordeste, num tráfico desumano, em que colaboravam as autoridades governamentais daquela região interessada em verem-se livres de uma pressão demográfica" .

Esta abordagem é elaborada de uma forma interessante sobre as causas que determinaram a quase extinção do beribéri, por Antônio Loureiro, é importante porque nos mostra que foi através da liberdade dada aos seringueiros para praticarem a agricultura de subsistência que houve uma melhora no cardápio dos extratores da borracha, fazendo com que houvesse uma extraordinária diminuição dos casos de beribéri nos seringais.

Somente não concordamos com Antônio Loureiro, quando ele afirma que com a prática dos agricultores de subsistência os seringais extinguiram o beribéri dos seringais. Porque nem em todos os seringais os seringueiros tiveram liberdade para cultivar a agricultura de subsistência, com isso, portanto, o beribéri ainda perdurou, como nos mostra o seguinte texto:

"Entidade nosologicas peculiares ao nosso meio são as agrupadas sob o nome de dysenterias, principalmente as produzidas por parazitos e que motivaram 17 óbitos contra 33 em 1916; e o beribéri 3 contra 7, ao passo que as tuberculoses ceifaram 149 e 150 vidas nos mesmos anos" .

Mas o mais curioso é que os médicos daqui de Manaus no início deste século desconhecessem por completo o diagnóstico do beribéri. Porém, uma experiência para se descobrir a causa de tal doença. Esta experiência vamos ver na íntegra, porém queremos afirmar que ela não se resume em encontrar a causa de beribéri, mas também trata sobre outras doenças: "em Manaus, fiz ponto na Farmácia Barreira, de Zorobabel Alves Barreira, meu primo e meu amigo. Encontrei-me aí o Dr. Augusto Linhares, meu colega desde tempo do Gynásio Cearense, na Serra de Baturité.

Linhares, que se formara um ano antes e me precedera na vinda para o Amazonas, passou-me o braço no pescoço e me falou em reserva:

- Olhe, Esperidião, dou-lhe um conselho de amigo: não fale aqui de transmissão de paludismo pelo Anopheles, se não quiser sofrer o que eu sofri; os colegas levaram-me ao ridículo apelidando-me de "Dr. Carapanã". Tive que meter a viola no saco.

- Pois, a primeira coisa que vou fazer é abrir campanha pela imprensa, publicando nos jornais da terra uma série de artigos sobre a nova teoria.

- Você assim não fará clínica; mire-se no meu exemplo.

- Eu prefiro a luta à imposição da ignorância.

- Antes serei seu companheiro.

Linhares e eu abrimos consultório junto à Farmácia Barreira.

Apresentando a Ataliba Corrêa, redator principal do "Comércio do Amazonas", jornal defensor da política do coronel Silvério José Nery, Governador do Estado, com plena liberdade, para esse diário, uma série de artigos acerca das novidades de medicina tropical.

Publicados os primeiros artigos sobre a transmissão da malária pelos anofelinos, visitei o Serviço Sanitário, na ânsia de ouvir contestações, tal era o meu entusiasmo de médico moço pioneiro de novas doutrinas.

Os doutores Alfredo da Mata, o diretor, muito delicado, Gouvêa Filho, como cargo de bacteriologista e a pose de sábio, Astrolábio Passos, macio e manhoso, Basílio Seixas, muito calado e Miranda Leão, que fora censor do Gymnásio Cearense , quando eu era aluno, provocaram logo a discussão, apresentando o argumento vulgar, de lugares salubres com muito mosquito e lugares paludosos sem mosquitos, o que, na verdade, constituía a regra geral. Expliquei o fato pela existência, nos locais praguejados, de mosquitos modestos, mas não transmissores que, forçando o uso do mosquiteiro, afastavam o perigo do esquivo anofelino, que seria também combatido, no viveiro de criação, pelas larvas carnívoras daqueles culicídios, incômodos, mas inocentes. Azedando-se a discussão, perguntei:

- Digam-me uma coisa: o que já leram sobre o assunto, a não ser a bula de propaganda das pílulas italianas esanofeses? Zangaram-se mas nada puderam responder.

- Mas os colegas não podem formar juízo sobre a matéria, sem saber o muito que se há realizado a esse respeito: observações, pesquisas, estudos parasitológicos, campanhas sanitárias, tudo coroado de pleno êxito.

O Dr. Astrolábio, mudando o rumo da palestra, perguntou-me:

- E que me diz do paludismo larvado, inteiramente, apirético?

- Onde viu esse paludismo?

- Sou o médico do Instituto Benjamin Constant, onde todas as educandas estão gravemente impaludadas, sem que apresentem acessos febris.

- Agora mesmo, respondi, estava eu, discretamente correndo os olhos nestas contas da Farmácia Studart, de medicamentos fornecidos ao Instituto Benjamin Constant, procurando ver qual o remédio usado contra a opilação, e nada encontrei. Anteontem, vi passarem em formatura, na rua, as alunas do Instituto, e doeu-me o coração ver uma centena de moças a morrerem de verminose. E vejo agora que são tratadas como impaludadas!

Astrolábio, roxo de raiva, respondeu:

- Se o senhor quer o cargo de médico do Instituto, posso cedê-lo, que não se faz falta.

- Não lhe invejo o cargo; mas sinto-me no dever de usar dessa franqueza, para que se salve a vida de uma centena de meninas.

- Admiro muito esse diagnóstico à distância!

- Faça esse exame de fezes e verá que o índice de infestação pelo Ancylostomus será de cerca de cem por cento.

- E o opilação será mesmo causada por verme?

- Ah, ainda estamos no tempo da infecção telúrica?!



Voltando na semana seguinte ao Serviço Sanitário, notei que se evitava a discussão. O Dr. Mata falando-me à parte, pediu-me uma lista de livros práticos sobre o assunto, sendo praticamente satisfeito.

O Dr. Gouvêa Filho levou-me ao laboratório para examinar as fezes "de uma sua cliente". Pensei logo que se tratava de uma amostra colhida no Instituto Benjamin Constant.

Examinando, rapidamente, uma gota de emulsão fecal entre lâmina e lamínula, assim que pus o preparado em foco, declarei que só naquele primeiro campo havia dezenas de ovos da Ancylostomus duodenale, de Ascaris lumbricoide e de Tricocéphalus sispar.

O bacteriologista oficial, examinando atentamente o campo microscópio, que lhe mostrei, perguntou com a entonação de quem examina um aluno:

- Como são os ovos de ancilóstomos?

E respondi-lhe, como quem ensina:

- São esses ovoides, claros como bolinha de ar, com o conteúdo segmentado.

Ele mordeu os lábios, despeitado, mas perguntou:

- E essas tartaruguinhas?

Sorri, pois que achei perfeita a comparação:

- Essas tartaruguinhas são ovos de lombrigas; e esses fusiformes amarelos, com dois pólos refrangentes são de Tricocéphalus dispar.

Ele, levantando os olhos de microscópio, ajeitou os óculos e perguntou, suspeitoso:

- Como o senhor sabe?

- Porque estou acostumado a vê-la e os conheço como toda gente conhece ovos de galinha, da pata e de peru. Além disso, os compêndios de parasitologia trazem ilustrações perfeitas.

Cerca de um mês depois, voltando eu a palestrar no Serviço Sanitário, encontrei todos os médicos sentados em torno de uma mesa, oferecendo-me o diretor um lugar a seu lado.

Nessa ocasião, O Dr. Mata recebeu e abriu pressuroso um pacote de livros trazidos de Paris pelo correio, serviço rápido naquele tempo, devido às viagens diretas e freqüentes dos bons transatlânticos de Booth Line, de Liverpool, e da Sud America, de Hamburgo, que tornavam então Manaus mais perto da Europa do que o Rio de Janeiro.

Os livros recebidos - "La Malaria", de Bertrand e Kleynens, "La lute contre les mousquites", de Sargente, e outros - espalharam-se pela roda curiosa, indo o primeiro às mãos do Dr. Gouvêa Filho, que pôs a ler afolha do rosto.

Dirigi-me então ao Dr. Mata:

- Eu duvido que alguém leia "La Malaria" e não se convença da transmissão do paludismo pelos mosquitos.

- O senhor já leu este livro? Perguntou-me, incrédulo e duvidoso, o Dr. Gouvêa Filho.

- Já! Respondi-lhe.

- Olhe, que é muito novo!

- É de 1903, e creio que já é tempo de estarem lidos os livros do ano passado.

E, voltando-se para o Dr. Mata, expliquei-lhe, propositadamente:

- Esse livro é magnífico: na primeira parte, muito curta e dá a "classificação dos protozoários"; nas outras quatro, bem desenvolvidas, trata dos "coccídios" dos "parasitos da malária humana", dos "mosquitos" e da "profilaxia". E passei a fazer comentários mais detalhados de cada parte.

Todos os presentes viram que ia alcançando a campanha de divulgação das novas doutrinas médicas, ou por causa da minha colaboração no seu jornal, o coronel Silvério Nery, nas vésperas de deixar o governo, nomeou-me, sem me consultar, diretor do Gymnásio Amazonense, importante instituto de ensino estadual.

Surpreso com a nomeação, só a aceitei por insistência de amigos, inclusive do professor Anacleto de Queiroz, que transferira para Manaus o seu colégio de Fortaleza.

O novo governador, Constantino Nery, pretendendo libertar-se da tutela do irmão, que o elegera vencendo grandes resistências, deu a minha demissão para satisfazer os elementos nativistas, enciumados com o meu triunfo.

Apesar amargor da derrota, fiquei no íntimo satisfeito com esse desfecho, que me repugnavam.



Logo depois de formado, no Rio de Janeiro, publicava no "Jornal do Comércio" (18 de janeiro de 1904) um artigo - "O beribéri e o mosquito" - sustentando a hipótese da origem infecciosa dessa polinevrite, que seria transmitida por um inseto hematófago, provavelmente por culicídios.

Ocorrendo, durante minha estada em Manaus, forte surto epidêmico de beribéri, em navios da esquadra ancorados no porto e no quartel de um batalhão do exército no bairro do Mocó, resolvi pesquisar acerca do agente transmissor dessa traiçoeira infecção.

Rebuscado cuidadosamente nos beliches dos marinheiros doentes e nas enfermarias dos soldados beribéricos, de insetos hematófagos encontrei unicamente o Culex fátigans, muito abundante. Colhi uma centena desses mosquitos ingurgitados de sangue; soltei-os dentro de um mosquiteiro de filó, armado no meu quarto, sob o qual me deitava, sem blusa, à noite, durante meia hora, deixando-me picar fartamente, pelos mosquitos suspeitos.

Dias depois, apresentei característicos sinais de beribéri: dormência nos pés e dos dedos das mãos, edema pretibial bem visível e andar pesado, riscando o chão.

Parei com a experiência, matando os mosquitos.

Alarmando com esses sintomas, que se acentuavam, resolvi fazer uma viagem até Camocim , no Ceará, como médico de bordo do vapor "Constantino Nery", que justamente procurava um profissional, para satisfazer a exigência da Saúde Pública.

Na viagem restabeleci-me prontamente e escrevi o relatório dessa experiência, que foi publicado no "Comércio do Amazonas".

De Camomim excursionei até Sobra, onde fui recebido com a máxima gentileza, pelo Dr. Vicente Sabóia, operoso e prestativo arrendatário da Estrada de Ferro de Sobral, e irmão do Dr. Humberto Sabóia, meu antigo colega do Gymnásio Cearense. Nessa cidade visitei o Dr. José Mendes Pereira de Vasconcellos, colega e amigo de meu pai, na Faculdade de Direito de Recife.

Depois da posse do coronel Constantino Nery, chegou a Manaus a Comissão de Combate à Febre Amarela, chefiada pelo professor Márcio Nery, irmão do governador, e composta pelos médicos Antônio Figueiredo Rodrigues, Sebastião Barroso Nunes e Augusto Linhares, este admitido em Manaus.

Fui depois nomeado Inspetor do Serviço Sanitário, apesar de surdamente hostilizado.

Eu, no entanto, continuava empolgado pelo espírito de aventura. Sem querer fixar-me definitivamente no tórrida e férvida cidade de Manaus, resolvi ir clinicar no Território do Acre, que me fascinava, como em geral aos audaciosos cearenses, que o haviam descoberto e conquistado.

Aparelhei-me convenientemente para o almejado empreendimento.

O professor Márcio Nery cedeu-me pelo preço de custo, cinquenta libras esterlinas, então um conto de réis - um belo microscópio Zeiss, que lhe trouxera de Paris o Senador Silvério Nery. Arranjei um pequeno laboratório, para exame de sangue e de fezes.

Pedi de Londres, por telegrama, a monografia "Culicidae" de Theobald do Museu Britânico, visto que pretendia dedicar-me à classificação sistemática dos mosquitos daquela região.

Mandei preparar uma grande ambulância, com remédios apropriados, inclusive muito quinino de ótima qualidade, especialmente em ampolas para injeção.

E bem munido de roupas leves e de mosquito de rede, embarquei para o Acre, seguindo o meu destino, levando grandiosos projetos e pesquisas" .

Este texto é sumamente interessante e importante para o nosso trabalho, porque só vem nos ajudar, a reforçar a tese de que, quem se empenha em fazer uma pesquisa que envolva medicina...nesta cidade, logo, recebe severas críticas, é ironizado e hostilizado...Também a citação desse texto nos remete à questão de que os profissionais da saúde de Manaus no final do século passado e início deste, estavam extremamente ligados à bacteriologia, à parasitologia e à higienização e não conseguiam perceber que muitas doenças eram provocadas pela ausência de uma alimentação adequada no cardápio dos manauaras. Inclusive o autor do texto citado, Esperidião de Queiroz Lima.



Autor: Guilherme da Silva Cunha - Acadêmico de Filosofia da Universidade do Amazonas

sexta-feira, 28 de maio de 2010

AMOR PLATÔNICO

AMOR PLATÔNICO


*Maria Ivanilda Souza da Silva



Na obra “O Banquete” escrito por Platão, Sócrates como em muitos outros diálogos escritos por ele, é apresentado como um dos personagens principais do texto. Na obra o tema abordado é o amor, mas como é habitual, para começar a falar sobre o amor, Sócrates afirma que: “em primeiro lugar se deve dizer qual é a natureza de Eros, e somente depois falar de seus efeitos”. Isto é, antes de tentar explicar as conseqüências do amor no mundo ou o que ele pode acarretar aos homens, é preciso saber quem ele realmente é. Perguntar o que é alguma coisa, é tentar defini-la, é buscar encontrar a sua essência. Essa era uma preocupação primordial da filosofia tanto socrática quanto platônica.

A cultura popular entende que o amor platônico se refere a uma espécie de amor impossível, um amor não correspondido, à distancia. É um amor revestido pela fantasia e pela idealização. O objeto amado seria um ser perfeito, detentor de todas as boas qualidades e sem máculas. Mas, deixando à concepção vulgar a parte, cabe-nos perguntar: o que o filósofo Platão compreende realmente pelo conceito de amor?

Para Platão quem ama, deseja algo que não possui, algo que lhe falta. O desejo humano é impulsionado pela necessidade, pois ninguém busca alguma coisa que já se possui, quando buscamos o dinheiro, por exemplo, queremos ter mais do que o que já temos, ou seja, se temos certa quantia em dinheiro, não queremos jamais aquilo que já possuímos, desejamos sempre aquela quantia a mais que ainda não temos. Ou ainda, quando amamos alguém buscamos nessa pessoa aquilo que falta em nós, aquele elemento que pode nos completar.

A característica do amor como falta, ou ausência de alguma coisa, de acordo com Platão, deve-se à sua origem. Para falar dessa questão, o autor, vai recorrer a um mito, recurso que vez por outra o filósofo utilizava para expressar algumas idéias.

Resumo do mito: Com o nascimento de Afrodite foi dado pelos deuses um grande banquete comemorativo, a que compareceu também Poros (o astuto). Enquanto se banqueteavam, aproximou-se Pênia (a pobreza), para mendigar as sobras da festa.

Embriagado pelo nécta Poros foi deitar nos jardins de Zeus. Foi então que Pênia em sua miséria, desejou ter um filho de Poros. Deitou-se ao seu lado e concebeu a Eros.

Por ser filho de Poros e Pênia, Eros tem o seguinte fado: é pobre, não é belo e nem delicado, é rude e sujo, anda descalço, não tem lar, essas características de Eros foram herdadas de sua mãe. Mas conforme a natureza do pai, Eros dirige a atenção para tudo o que é belo e gracioso, é corajoso e impulsivo, é capaz de encontrar soluções brilhantes para sair das dificuldades e passa todo o seu tempo amando a sabedoria.

Platão não classifica Eros como um deus, mais sim, como uma espécie de gênio que faria a ponte entre os humanos e os deuses. Esse gênio oscila entre a sabedoria e a tolice, isto é, não possui a sabedoria plena, pois esta pertence somente aos deuses, e como sábios estes não são capazes de amar o conhecimento, pois não podem desejar aquilo que já possuem. Nesse sentido, o sábio não filosofa, assim como, também o tolo não filosofa. A tolice, segundo Platão, possui um grande defeito, ao se considerar como alguma coisa de perfeito, não é capaz de perceber-se como incompleta e insuficiente, e como tal não deseja aquilo cuja falta não pode perceber.

De acordo com Platão, só serão capazes de filosofar aqueles que forem intermediários entre a ignorância e a sabedoria. O filosofo é o amigo da sabedoria, é alguém que busca o conhecimento de forma incessante. O filósofo não arroga ser o dono do saber, é humilde o suficiente para perceber as suas limitações e a partir daí busca alcançar aquilo que lhe falta. A presunção da sabedoria e a falta de percepção da ignorância são entraves ao desenvolvimento intelectual dos indivíduos, pois só podemos crescer intelectualmente se conseguirmos verdadeiramente realizar uma análise interior, se formos capazes de reconhecer as nossas limitações intelectuais.

Pode-se concluir que o verdadeiro sentido do amor em Platão, não se refere ao desejo carnal, ou seja, ao amor de uma pessoa pela outra. O amor tem um aspecto mais sublime, somente ele pode levar à plena realização do ser humano, é através dele que podemos atingir o mais alto grau de conhecimento. O amor como desejo daquilo que não se possui, é o que nos impulsiona para a busca, para a constante preocupação com o saber. O amor platônico ou filosófico é um impulso apaixonado da alma para a sabedoria e consequentemente para a virtude. A filosofia não se constitui como uma tarefa de deuses é uma produção puramente humana.

*É filósofa, professora e vice-presidente da Academia Acriana de Filosofia.