terça-feira, 15 de junho de 2010

História do Internamento Psiquiátrico na Cidade de Manaus

História do Internamento Psiquiátrico na Cidade de Manaus

Guilherme da Silva Cunha



A população de Manaus cresceu vertiginosamente, por causa da imigração, a maioria de nordestinos, que "entre 1877 e 1879, o nordeste brasileiro sofre uma das piores secas de sua história. Somente do Ceará, mais de 65.000 pessoas partem para a Amazônia, acossados pelo flagelo natural e pela crise da economia agrária. Esse contingente humano vai servir de mão-de-obra nos seringais" . Também outros autores trataram do assunto, vejamos "...no período de 1877 a 1900, encontrei 158.125 nordestinos emigrados para a Amazônia..." Dorneles Câmara, no seu trabalho Colocação no Amazonas dos flagelados do Nordeste, publicado em 1919, calcula que de 1877 a 1890, a população cearense ficou reduzida a um terço. 'Talvez certa de 300.000 pessoas haviam falecido umas e emigrado outras'.

Já Arthur Dias, no seu livro O Brasil Atual, calcula que somente os anos de 1877 a 1889, 'o êxodo para o norte e para o sul do Brasil tomou proporções assombrosas, calculando-se em cerca de 150.000 cearenses a terra do berço para fugirem à calamidade'.

Tomaz Pompeu de Souza Brasil, em O Ceará no Começo do Século XX, publicado em 1909, 'registra que somente nos meses de novembro e dezembro de 1877, os retirantes foram 42.931 e 80.000 respectivamente, perfazendo o total de 125.931, em outubro de 1878 foram 108.656, e em abril de 1879 somente 17.486 retirantes.

Rodolfo Teófilo, em Secas do Ceará (1901) e História da Seca do Ceará, editado em 1883, diz que o Ceará em 1878 perdeu por mortes 118.927 e pela emigração 54.875.

Pompeu Sobrinho, em O Ceará -Aspectos Fisiológicos e Antropológicos, estima que "depois do flagelo climático de 1919, o Ceará expulsou 60.00 almas. A seca de 1915 desfalcou a população de 97.000 pessoas" .

O importante é perceber que não foi somente a seca que expulsou os nordestinos para a Amazônia, mas também eles foram seduzidos pela forte propaganda do governo nos meios de comunicação no sul do país sobre a Amazônia. A região era vista como, uma terra em que corre "leite com mel", um lugar onde a extração da borracha era um "belo" meio para se ganhar dinheiro e enriquecer rapidamente. Mas quando os seduzidos pela propaganda chagavam em Manaus, no tempo áureo do ciclo da borracha, os seus destinos estavam assim traçados: os jovens que eram sadios e fortes logo eram convocados e aproveitados pelos coronéis e patrões seringalistas na grande e dura labuta da extração da goma elástica, os velhos e as mulheres se adentravam na economia informal ou iam para a rua mendigar.

Antes da terrível crise da borracha, os patrões adotavam uma linha extremamente dura e com severas proibições, se tratava de um sistema de semi-escravidão, onde, nos seringais, os seringueiros não podiam cultivar a agricultura de subsistência e muito menos plantar verduras. Pois se eles (os seringueiros) fizessem tais coisas, os patrões não tinham para quem vender seus enlatados, seu açúcar branco, sua farinha branca e seu arroz polido. Então, o que aconteceu? Aconteceu que os seringueiros eram obrigados a comprar e se alimentar com ausência de vitamina B1 (tiamina), aí a maioria adoecia com beribéri, que é uma doença provocada pela ausência de tiamina na dieta humana "...ela é caracterizada por um acúmulo de fluídos corporais (inchaço), paralisias e, em última instância, morte."

Outrossim a deficiência de tiamina lesa os nervos periféricos (beribéri "seco"), o coração (beribéri "úmido") e o sistema nervoso central (síndrome de Wernicke-Korsakoff).

Nos países subdesenvolvidos onde grande parte da dieta escassa é constituída por arroz polido, como ocorre em muitas áreas do sudoeste asiático, às vezes surge deficiência de tiamina. O beribéri foi também observado entre prisioneiros de guerra maltratados "...Os principais alvos da deficiência de tiamina são (1) coração, (2) os nervos periféricos e (3) o cérebro...O álcool lesa os mesmos e a deficiência de tiamina é encontrada comumente em alcóolicos crônicos..." . Combinando-se álcool com uma dieta pobre em tiamina, como era o caso do extrativismo, se podia imaginar as consequências funestas para a região.

Em 1908, numa estatística mortuária da cidade de Manaus o beribéri "occasionou 119 óbitos, não havendo, entretanto, epidemia na capital. A maioria doa casos procederam do interior do Estado" . Parafraseando: a maioria dos casos vindos dos seringais. É exatamente nos seringais que o beribéri encontra abrigo predileto, devido à ausência de tiamina no cardápio dos seringueiros, que além de não comerem verduras e frutas, ainda tomavam bastante cachaça; ajudando, com isso, o beribéri a desencadear-se com mais freqüência e tenacidade.

A maioria dos doentes de beribéri, eram internados na Santa Casa de Misericórdia e como os médicos desconheciam tal doença, quando os doentes eram atingidos no sistema nervoso central (síndrome de Wernicke-Korsakoff) e que "...caracteriza-se...ataxia de marcha e do equilíbrio e desorganização da função mental caracterizada por confusão global, apatia, desatenção e desorganização. Cerca de 10 a 20 % dos doentes hospitalizados morreram habitualmente de infecção intercorrente, delirium tremens ou insuficiência cardíaca (em alcoólicos) ou colapso cardiovascular brusco" . Logo, alguns dentre estes eram tidos como "loucos" principalmente por causa do "delirium tremens", e enviados ao Hospício Eduardo Ribeiro. Chegando ao hospício, como não havia um psiquiatra responsável pelo atendimento dos pacientes e sim um clínico geral, que não conhecia a causa e os sintomas do beribéri e não podiam conhecer, pois somente, em 1914, é que a medicina vai descobrir e fornecer o quadro diagnóstico de tal doença. Os doentes internados no hospício eram "...vitimados pelo beribéri que entre eles se desenvolvera em larga escala, e como uma parte do prédio ameaçasse cair, foram eles transportados pela urgente necessidade da ocasião, para a casa sita à rua Ramos Ferreira, de propriedade do sr. Miranda Leão, onde ainda se acham mal alojados, pois o prédio não se presta para tal fim..."



Acreditava-se que o beribéri era uma doença desenvolvida no hospício devido às péssimas condições higiênicas e arquitetônicas do prédio e que a loucura matava. Porém, hoje podemos afirmar veementemente que o beribéri é uma doença causada pela ausência de tiamina na dieta e que a loucura não mata ninguém, e sim, outras doenças. Como podemos ver no quadro acima, o beribéri exterminou os pacientes e não a loucura como atestavam os "especialistas" daqui de Manaus naquela época. Até porque "a loucura só existe com relação à razão".

Também na casa de detenção "o estado sanitário deste estabelecimento infelizmente continua a merecer os mais sérios cuidados, sendo preciso a cada momento remover presos para a Santa Casa de Misericórdia devido ao impaludismo e beribéri, moléstias terríveis, cujos casos/fatos são constantes n'aquele departamento, devido ao local e a construção defeituosa do edifício" .

Esta passagem só vem enriquecer ainda mais a tese mencionada anteriormente. Pois, o destino dos doentes de beribéri é o Hospício Eduardo Ribeiro e o extermínio dos mesmos, no mesmo hospício pela mesma doença acima citada.

Já nos seringais não é só o beribéri que reina e extermina. É também "...as úlceras tropicais que se multiplicam em tantas modalidades, causando aos trabalhadores dos seringais grande entrave ao regular e eficiente emprego da atividade..." . E qual é a principal causa? Não é preciso ser um grande especialista no assunto para perceber que é devido à ausência de vitaminas encontradas essencialmente em alimentos frescos, tais como: verduras e legumes. Porém, podemos levantar a hipóteses de muitos seringueiros terem adquiridos úlceras nervosa, devido à forte pressão dos patrões e seus colegas que faziam o medo pairar nos seringais. Pois os seringueiros estavam sobre dependência dos seringalistas que os avassalavam na relação comercial, como podemos ver no texto a seguir: "Na verdade, as modalidades de troca variavam não apenas de propriedade para propriedade, mas até mesmo de estrada para estrada, uma vez que cada um dos "aviados" podia estabelecer acordos muito diversos com o respectivo patrão. Por exemplo, muitos seringueiros eram realmente seringalistas em pequena escala, que possuíam legalmente quatro ou cinco estradas, juntamente com terra suficiente para sustentar a si próprio e suas famílias com uma dieta de mandioca, peixe e caça. Ainda assim, esse seringueiro proprietário teria relações informais de dependência com um comerciante do vilarejo, ou com um vizinho mais rico, mas essa relação seria mais flexível e menos suscetível de coração do que a existente entre o seringueiro não-proprietário e o seringalista" . Agora podemos nos perguntar: qual o tipo de coerção exercida pelos seringalistas sobre os seringueiros não-proprietários? A coerção era imposta através do "imenso potencial de fraude, trapaça...onde um pequeno grupo de negociantes poderosos tenta extrair o máximo rendimento de um conjunto limitado de produtores" . E para reforçar mais, declaramos através do texto seguinte que "havia conflitos e tensões em todo os níveis da rede de aviamento, variando de intensidade desde pequenas trapaças banais até a violência declarada, sendo o seringueiro a principal vítima de tais fraudes e maus-tratos" . E ainda mais "o relativo isolamento do seringueiro e seu justificado temor de represálias tornava difícil e rara a resistência coletiva. O seringueiro dispunha, porém, de alguns meios de autodefesa. Uma reação comum e lucrativa contra o comerciante que tentasse aumentar suas exigências, ou elevar os preços, era acrescentar pedras, areia ou farinha de mandioca à pela de borracha para tornar maior seu peso. Deste modo, o seringueiro podia aumentar significativamente seu ganho sem trabalho adicional, e dificilmente a fraude era descoberta antes que a pele chegasse a Belém ou a Manaus. Já nas docas, ela seria aberta no meio para ser inspecionada, mas a essa altura era praticamente impossível verificar qual o seringueiro responsável pela adulteração.

Forma particularmente grave de 'resistência' do seringueiro era a venda de borracha a um regatão e não ao patrão habitual do seringueiro..." . Agora, portanto, convém lembrar que todos esses fatos acima mencionados podem muito bem Ter contribuído para eles adquirirem as chamadas "úlceras tropicais".

Até aqui defendemos a tese de que foi no tempo áureo do ciclo da borracha que houve o maior índice de beribéri em Manaus. Agora, passamos a tratar da tese de quase extinção do beribéri que só foi possível por causa dos "tempos difíceis" da grande crise do ciclo da goma elástica.

Vejamos como isso ocorreu:

"A produção da borracha foi diminuída, pois a Ásia continuava a expandir suas plantações, enquanto o número de seringueiros nativos mantinham-se constante ou mesmo em declínio.

O quadro de exportadores de Manaus alterou-se bastante, com a retirada de inúmeras firmas estrangeiras dos negócios e com a entrada de outras, pertencentes a nacionais e portugueses. Contudo, reduziu-se o seu número, e como já vinha ocorrendo há anos, um pequeno grupo controlava a maior parte das exportações.

Os recebedores, na sua maioria, era os mesmos do período anterior. Além das saídas naturais e de algumas falências, durante a grande crise, houvera o crescimento de muitas empresas, substituindo outras em declínio, no ranking dos aviadores. O sistema de aviamento continua funcionando, embora muitos dos produtos estrangeiros importados estivesses sendo substituídos por similares das crescentes agricultura e indústria do sul, do país.

A grande mudança dera-se ao nível das zonas de produção. Um bom número de seringalistas perdera as suas propriedades para firmas aviadoras, ou as loucuras a terceiros, os arrendatários, seus substitutos na linha de produção. Muitos deles voltaram aos seus estados de origem, ou passaram a residir nas capitais, ou ainda, conseguiam cargos políticos, nos quadros administrativos municipais, deixando a sua atividade inicial.

Como a borracha não era mais atrativa, o fluxo de emigrantes do nordeste diminuíra, orientando-se para o centro-sul, na busca de melhores e mais seguras remunerações.

A queda da rentabilidade dos seringais impedia aos seus possuidores a obtenção de disponibilidade monetárias, para o financiamento das correntes migratórias. .Por este motivo, passara a existir uma agricultura de subsistência nos seringais, aumentando a oferta de alimentos não manipulados a naturais, disso decorrendo a extinção do beribéri, doença ceifadora de milhares de trabalhadores, nos anos anteriores. A estabilidade populacional e a sua adaptação ao meio, também reduziram

Os casos de doenças endemo-epidêmicas, começando os seringueiros a se auto substituírem, pelo crescimento demográfico local, desaparecendo a necessidade das grandes levas anuais de semi-escravos, arrebanhados do nordeste, num tráfico desumano, em que colaboravam as autoridades governamentais daquela região interessada em verem-se livres de uma pressão demográfica" .

Esta abordagem é elaborada de uma forma interessante sobre as causas que determinaram a quase extinção do beribéri, por Antônio Loureiro, é importante porque nos mostra que foi através da liberdade dada aos seringueiros para praticarem a agricultura de subsistência que houve uma melhora no cardápio dos extratores da borracha, fazendo com que houvesse uma extraordinária diminuição dos casos de beribéri nos seringais.

Somente não concordamos com Antônio Loureiro, quando ele afirma que com a prática dos agricultores de subsistência os seringais extinguiram o beribéri dos seringais. Porque nem em todos os seringais os seringueiros tiveram liberdade para cultivar a agricultura de subsistência, com isso, portanto, o beribéri ainda perdurou, como nos mostra o seguinte texto:

"Entidade nosologicas peculiares ao nosso meio são as agrupadas sob o nome de dysenterias, principalmente as produzidas por parazitos e que motivaram 17 óbitos contra 33 em 1916; e o beribéri 3 contra 7, ao passo que as tuberculoses ceifaram 149 e 150 vidas nos mesmos anos" .

Mas o mais curioso é que os médicos daqui de Manaus no início deste século desconhecessem por completo o diagnóstico do beribéri. Porém, uma experiência para se descobrir a causa de tal doença. Esta experiência vamos ver na íntegra, porém queremos afirmar que ela não se resume em encontrar a causa de beribéri, mas também trata sobre outras doenças: "em Manaus, fiz ponto na Farmácia Barreira, de Zorobabel Alves Barreira, meu primo e meu amigo. Encontrei-me aí o Dr. Augusto Linhares, meu colega desde tempo do Gynásio Cearense, na Serra de Baturité.

Linhares, que se formara um ano antes e me precedera na vinda para o Amazonas, passou-me o braço no pescoço e me falou em reserva:

- Olhe, Esperidião, dou-lhe um conselho de amigo: não fale aqui de transmissão de paludismo pelo Anopheles, se não quiser sofrer o que eu sofri; os colegas levaram-me ao ridículo apelidando-me de "Dr. Carapanã". Tive que meter a viola no saco.

- Pois, a primeira coisa que vou fazer é abrir campanha pela imprensa, publicando nos jornais da terra uma série de artigos sobre a nova teoria.

- Você assim não fará clínica; mire-se no meu exemplo.

- Eu prefiro a luta à imposição da ignorância.

- Antes serei seu companheiro.

Linhares e eu abrimos consultório junto à Farmácia Barreira.

Apresentando a Ataliba Corrêa, redator principal do "Comércio do Amazonas", jornal defensor da política do coronel Silvério José Nery, Governador do Estado, com plena liberdade, para esse diário, uma série de artigos acerca das novidades de medicina tropical.

Publicados os primeiros artigos sobre a transmissão da malária pelos anofelinos, visitei o Serviço Sanitário, na ânsia de ouvir contestações, tal era o meu entusiasmo de médico moço pioneiro de novas doutrinas.

Os doutores Alfredo da Mata, o diretor, muito delicado, Gouvêa Filho, como cargo de bacteriologista e a pose de sábio, Astrolábio Passos, macio e manhoso, Basílio Seixas, muito calado e Miranda Leão, que fora censor do Gymnásio Cearense , quando eu era aluno, provocaram logo a discussão, apresentando o argumento vulgar, de lugares salubres com muito mosquito e lugares paludosos sem mosquitos, o que, na verdade, constituía a regra geral. Expliquei o fato pela existência, nos locais praguejados, de mosquitos modestos, mas não transmissores que, forçando o uso do mosquiteiro, afastavam o perigo do esquivo anofelino, que seria também combatido, no viveiro de criação, pelas larvas carnívoras daqueles culicídios, incômodos, mas inocentes. Azedando-se a discussão, perguntei:

- Digam-me uma coisa: o que já leram sobre o assunto, a não ser a bula de propaganda das pílulas italianas esanofeses? Zangaram-se mas nada puderam responder.

- Mas os colegas não podem formar juízo sobre a matéria, sem saber o muito que se há realizado a esse respeito: observações, pesquisas, estudos parasitológicos, campanhas sanitárias, tudo coroado de pleno êxito.

O Dr. Astrolábio, mudando o rumo da palestra, perguntou-me:

- E que me diz do paludismo larvado, inteiramente, apirético?

- Onde viu esse paludismo?

- Sou o médico do Instituto Benjamin Constant, onde todas as educandas estão gravemente impaludadas, sem que apresentem acessos febris.

- Agora mesmo, respondi, estava eu, discretamente correndo os olhos nestas contas da Farmácia Studart, de medicamentos fornecidos ao Instituto Benjamin Constant, procurando ver qual o remédio usado contra a opilação, e nada encontrei. Anteontem, vi passarem em formatura, na rua, as alunas do Instituto, e doeu-me o coração ver uma centena de moças a morrerem de verminose. E vejo agora que são tratadas como impaludadas!

Astrolábio, roxo de raiva, respondeu:

- Se o senhor quer o cargo de médico do Instituto, posso cedê-lo, que não se faz falta.

- Não lhe invejo o cargo; mas sinto-me no dever de usar dessa franqueza, para que se salve a vida de uma centena de meninas.

- Admiro muito esse diagnóstico à distância!

- Faça esse exame de fezes e verá que o índice de infestação pelo Ancylostomus será de cerca de cem por cento.

- E o opilação será mesmo causada por verme?

- Ah, ainda estamos no tempo da infecção telúrica?!



Voltando na semana seguinte ao Serviço Sanitário, notei que se evitava a discussão. O Dr. Mata falando-me à parte, pediu-me uma lista de livros práticos sobre o assunto, sendo praticamente satisfeito.

O Dr. Gouvêa Filho levou-me ao laboratório para examinar as fezes "de uma sua cliente". Pensei logo que se tratava de uma amostra colhida no Instituto Benjamin Constant.

Examinando, rapidamente, uma gota de emulsão fecal entre lâmina e lamínula, assim que pus o preparado em foco, declarei que só naquele primeiro campo havia dezenas de ovos da Ancylostomus duodenale, de Ascaris lumbricoide e de Tricocéphalus sispar.

O bacteriologista oficial, examinando atentamente o campo microscópio, que lhe mostrei, perguntou com a entonação de quem examina um aluno:

- Como são os ovos de ancilóstomos?

E respondi-lhe, como quem ensina:

- São esses ovoides, claros como bolinha de ar, com o conteúdo segmentado.

Ele mordeu os lábios, despeitado, mas perguntou:

- E essas tartaruguinhas?

Sorri, pois que achei perfeita a comparação:

- Essas tartaruguinhas são ovos de lombrigas; e esses fusiformes amarelos, com dois pólos refrangentes são de Tricocéphalus dispar.

Ele, levantando os olhos de microscópio, ajeitou os óculos e perguntou, suspeitoso:

- Como o senhor sabe?

- Porque estou acostumado a vê-la e os conheço como toda gente conhece ovos de galinha, da pata e de peru. Além disso, os compêndios de parasitologia trazem ilustrações perfeitas.

Cerca de um mês depois, voltando eu a palestrar no Serviço Sanitário, encontrei todos os médicos sentados em torno de uma mesa, oferecendo-me o diretor um lugar a seu lado.

Nessa ocasião, O Dr. Mata recebeu e abriu pressuroso um pacote de livros trazidos de Paris pelo correio, serviço rápido naquele tempo, devido às viagens diretas e freqüentes dos bons transatlânticos de Booth Line, de Liverpool, e da Sud America, de Hamburgo, que tornavam então Manaus mais perto da Europa do que o Rio de Janeiro.

Os livros recebidos - "La Malaria", de Bertrand e Kleynens, "La lute contre les mousquites", de Sargente, e outros - espalharam-se pela roda curiosa, indo o primeiro às mãos do Dr. Gouvêa Filho, que pôs a ler afolha do rosto.

Dirigi-me então ao Dr. Mata:

- Eu duvido que alguém leia "La Malaria" e não se convença da transmissão do paludismo pelos mosquitos.

- O senhor já leu este livro? Perguntou-me, incrédulo e duvidoso, o Dr. Gouvêa Filho.

- Já! Respondi-lhe.

- Olhe, que é muito novo!

- É de 1903, e creio que já é tempo de estarem lidos os livros do ano passado.

E, voltando-se para o Dr. Mata, expliquei-lhe, propositadamente:

- Esse livro é magnífico: na primeira parte, muito curta e dá a "classificação dos protozoários"; nas outras quatro, bem desenvolvidas, trata dos "coccídios" dos "parasitos da malária humana", dos "mosquitos" e da "profilaxia". E passei a fazer comentários mais detalhados de cada parte.

Todos os presentes viram que ia alcançando a campanha de divulgação das novas doutrinas médicas, ou por causa da minha colaboração no seu jornal, o coronel Silvério Nery, nas vésperas de deixar o governo, nomeou-me, sem me consultar, diretor do Gymnásio Amazonense, importante instituto de ensino estadual.

Surpreso com a nomeação, só a aceitei por insistência de amigos, inclusive do professor Anacleto de Queiroz, que transferira para Manaus o seu colégio de Fortaleza.

O novo governador, Constantino Nery, pretendendo libertar-se da tutela do irmão, que o elegera vencendo grandes resistências, deu a minha demissão para satisfazer os elementos nativistas, enciumados com o meu triunfo.

Apesar amargor da derrota, fiquei no íntimo satisfeito com esse desfecho, que me repugnavam.



Logo depois de formado, no Rio de Janeiro, publicava no "Jornal do Comércio" (18 de janeiro de 1904) um artigo - "O beribéri e o mosquito" - sustentando a hipótese da origem infecciosa dessa polinevrite, que seria transmitida por um inseto hematófago, provavelmente por culicídios.

Ocorrendo, durante minha estada em Manaus, forte surto epidêmico de beribéri, em navios da esquadra ancorados no porto e no quartel de um batalhão do exército no bairro do Mocó, resolvi pesquisar acerca do agente transmissor dessa traiçoeira infecção.

Rebuscado cuidadosamente nos beliches dos marinheiros doentes e nas enfermarias dos soldados beribéricos, de insetos hematófagos encontrei unicamente o Culex fátigans, muito abundante. Colhi uma centena desses mosquitos ingurgitados de sangue; soltei-os dentro de um mosquiteiro de filó, armado no meu quarto, sob o qual me deitava, sem blusa, à noite, durante meia hora, deixando-me picar fartamente, pelos mosquitos suspeitos.

Dias depois, apresentei característicos sinais de beribéri: dormência nos pés e dos dedos das mãos, edema pretibial bem visível e andar pesado, riscando o chão.

Parei com a experiência, matando os mosquitos.

Alarmando com esses sintomas, que se acentuavam, resolvi fazer uma viagem até Camocim , no Ceará, como médico de bordo do vapor "Constantino Nery", que justamente procurava um profissional, para satisfazer a exigência da Saúde Pública.

Na viagem restabeleci-me prontamente e escrevi o relatório dessa experiência, que foi publicado no "Comércio do Amazonas".

De Camomim excursionei até Sobra, onde fui recebido com a máxima gentileza, pelo Dr. Vicente Sabóia, operoso e prestativo arrendatário da Estrada de Ferro de Sobral, e irmão do Dr. Humberto Sabóia, meu antigo colega do Gymnásio Cearense. Nessa cidade visitei o Dr. José Mendes Pereira de Vasconcellos, colega e amigo de meu pai, na Faculdade de Direito de Recife.

Depois da posse do coronel Constantino Nery, chegou a Manaus a Comissão de Combate à Febre Amarela, chefiada pelo professor Márcio Nery, irmão do governador, e composta pelos médicos Antônio Figueiredo Rodrigues, Sebastião Barroso Nunes e Augusto Linhares, este admitido em Manaus.

Fui depois nomeado Inspetor do Serviço Sanitário, apesar de surdamente hostilizado.

Eu, no entanto, continuava empolgado pelo espírito de aventura. Sem querer fixar-me definitivamente no tórrida e férvida cidade de Manaus, resolvi ir clinicar no Território do Acre, que me fascinava, como em geral aos audaciosos cearenses, que o haviam descoberto e conquistado.

Aparelhei-me convenientemente para o almejado empreendimento.

O professor Márcio Nery cedeu-me pelo preço de custo, cinquenta libras esterlinas, então um conto de réis - um belo microscópio Zeiss, que lhe trouxera de Paris o Senador Silvério Nery. Arranjei um pequeno laboratório, para exame de sangue e de fezes.

Pedi de Londres, por telegrama, a monografia "Culicidae" de Theobald do Museu Britânico, visto que pretendia dedicar-me à classificação sistemática dos mosquitos daquela região.

Mandei preparar uma grande ambulância, com remédios apropriados, inclusive muito quinino de ótima qualidade, especialmente em ampolas para injeção.

E bem munido de roupas leves e de mosquito de rede, embarquei para o Acre, seguindo o meu destino, levando grandiosos projetos e pesquisas" .

Este texto é sumamente interessante e importante para o nosso trabalho, porque só vem nos ajudar, a reforçar a tese de que, quem se empenha em fazer uma pesquisa que envolva medicina...nesta cidade, logo, recebe severas críticas, é ironizado e hostilizado...Também a citação desse texto nos remete à questão de que os profissionais da saúde de Manaus no final do século passado e início deste, estavam extremamente ligados à bacteriologia, à parasitologia e à higienização e não conseguiam perceber que muitas doenças eram provocadas pela ausência de uma alimentação adequada no cardápio dos manauaras. Inclusive o autor do texto citado, Esperidião de Queiroz Lima.



Autor: Guilherme da Silva Cunha - Acadêmico de Filosofia da Universidade do Amazonas